sábado, 12 de abril de 2008

Dom Casmurro : O Otelo de Machado de Assis



Publicado pela primeira vez em 1899, Dom Casmurro, de Machado de Assis (1839-1908) é objeto de acirradas discussões entre leigos, professores e críticos. Trata-se de um duplo perfeito meticulosamente calculado pelo maior romancista da Língua Portuguesa.

Ao analisar o livro, o leitor deve ter em mente que essa é uma obra passível de duas interpretações fundamentais e antagônicas. A adesão a uma ou a outra dependerá da credibilidade que se atribui ao narrador-protagonista. O famoso pomo de discórdia que alavanca as polêmicas em torno do romance é a questão do adultério: Capitu, esposa de Bentinho, teria ou não o traído com Escobar? Mas será esse o problema nuclear da obra, ou mero pretexto para verificar aspectos maiores?

Capitu chegara à vida de Bentinho ainda criança, por volta dos cinco anos. Companheiros de brincadeiras, ele “batizava” as bonecas dela. Mas os anos passaram, e chegou o tempo do amor. Além disso, Bentinho, foco de convergência de sua casa, e até certo ponto seiva para os que desejavam a vitalidade apesar da falta de objetivos, tinha seu futuro neutralizado por uma promessa. Sua mãe, mulher devota, após a perda do primeiro filho, que nascera morto, prometera que, se o próximo fosse homem e vingasse, seria padre.

O período de seminário — ao qual, aliás, o temperamento pacato de Bentinho se acostumava — trouxe-lhe o amigo Ezequiel Escobar. Pouco mais velho e também pouco disposto aos votos, Escobar tinha um projeto que não envolvia amores: sua vocação era o comércio. Ambos conseguiram livrar-se do celibato: Bento foi a São Paulo estudar Direito, enquanto Escobar se estabeleceu como próspero comerciante. Em suas muitas viagens levava e trazia a correspondência entre Bento e Capitu, a quem chamava “cunhadinha”. Nesse meio tempo, Escobar conheceu a melhor amiga de Capitu, Sancha.
Os encontros resultaram em dois casamentos: Bento e Capitu; Escobar e Sancha. Estes logo tiveram uma filha, Capituzinha, em homenagem à madrinha. Os protagonistas retribuíram a consideração dos amigos dando o nome Ezequiel ao filho. Logo que Ezequiel nasceu, Escobar sugeriu a Bentinho que trabalhassem pelo casamento de seus filhos.


Os casais se freqüentavam, os pequenos se entendiam. Até que numa noite, depois de anos de convívio — Ezequiel tinha cerca de seis anos e Capituzinha nove —, Bento notou Sancha como não havia notado antes. O mar, onde todas as manhãs Escobar costumava nadar, estava em ressaca. Da janela da casa do amigo, na escuridão da noite, sentia o bramir do oceano; excitado pelo perigo que o aguardava na manhã seguinte ele estava certo de que mais uma vez venceria os caprichos das ondas.
Nessa noite, após o jantar, todos conversavam. Escobar sugeriu que tinha algo a dizer a Bentinho, mas que ficaria para outra ocasião. Este, então, sondou Sancha, que lhe parecia extraordinariamente bonita e acolhedora na ocasião. Ela lhe contou em segredo que o tal projeto era uma viagem à Europa dali a dois anos, os quatro, e rogou-lhe que não contasse ao marido. Ao se despedirem, a mulher de Escobar, a seu ver, apertou-lhe a mão com mais entusiasmo e olhou-o de modo peculiar, o que agravou a atração que sentia por ela naquele momento.
A impressão de cumplicidade sensual entre Sancha e Bentinho dilui-se na manhã seguinte, quando ele acordou com a notícia de que Escobar estava morto, vencido finalmente pelo mar.
A viúva ficou tão transtornada e infeliz que nada havia que cogitar sobre seu amor e fidelidade pelo marido. Ao lado do caixão permanecia aos soluços, amparada pela amiga Capitu, que, diga-se, não chorou, exceto na hora de fechar o caixão, momento em que homens e mulheres choraram. Somente Bentinho suspendeu suas lágrimas ao ver as da mulher “poucas e caladas”, e que ela enxugou “rápido” e, a seu ver, “a furto”.
Tempos depois, após um almoço, Capitu, ainda à mesa, aludiu a uma semelhança entre o olhar do filho e os de duas pessoas que conhecera antes, um amigo de seu pai e o “defunto Escobar”. Bento ponderou para si que não haveria mais de uma dúzia de olhares no mundo, e disse à esposa que em matéria de beleza, os olhos de Ezequiel haviam saído aos dela.


Mas o que se planta no inconsciente, no consciente viceja. O narrador foi tomado pela certeza de que o grande amor de sua vida o havia traído com seu melhor amigo. O único amor, o único amigo. A certeza o arrebatou. A partir de então passou a distanciar-se da família. Já não acudia às festas do filho quando chegava do trabalho e costumavam brincar. Evitava a esposa, em longas saídas.
Numa delas, assistiu a Otelo, clássico de William Shakespeare (1564-1616). Como é sabido, Otelo, o mouro de Veneza, casa-se com Desdêmona, rendendo-se ao mútuo e sincero amor que os unia. Mas o falso amigo Iogo persuade Otelo de que sua mulher o traía e planta um lencinho da inocente Desdêmona na casa do suposto amante. Otelo mata a esposa e depois se suicida.
No momento em que a platéia assistia ao assassinato de Desdêmona, irrompeu em aplausos. Esses aplausos tanto podem ser entendidos como entusiasmo pela atuação do elenco, quanto como um paralelo ao estado emocional do narrador: ou Capitu é Desdêmona, portanto, inocente, ou a peça pode ser um alerta para a traição de Capitu.
Ao final, Bento, definitivamente dominado pela suspeita, pensa em suicídio colocando veneno no café. Era domingo de manhã, dia de missa. O filho entrou na cozinha exatamente no momento em que Bento se preparava para ingerir a beberagem. Ao ver o garoto, porém, decidiu num lampejo que era o menino quem devia morrer, e lhe ofereceu a xícara. Ezequiel, que já tomara café, ansioso por agradar ao pai que andava tão distante, apanhou a xícara. Quando ia beber, Bento a derrubou de propósito, e começou a chorar. O menino, assustado, puxou-lhe pelas calças, chamando: “ — Papai!”. Ele disse que não era seu pai.


Optaram pela farsa: Capitu e Ezequiel partiriam com Bentinho para a Suíça, com o suposto intuito de dar uma educação européia ao garoto. Ambos nunca mais voltaram. Bentinho nunca assumiu a separação perante a sociedade

Durante seis meses, dom Casmurro conviveu com Ezequiel e com a suposta semelhança. Ao cabo desses, o rapaz seguiu para Jerusalém, onde morreria de uma febre. O narrador, ao receber a conta do funeral e a cópia do que se escreveu na lápide, diz que custou caro, mas que pagaria o dobro apenas para nunca mais ter de ver Ezequiel.
O arremate da obra é intrigante: citando o capítulo IX, versículo 1, de Jesus, filho de Sirach:
“Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti”.
De olho no vestibular!
1.(UEL) O texto abaixo é o último capítulo do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é esse propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca. E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A Terra lhes seja leve! Vamos à História dos subúrbios.Pela leitura do texto, é correto afirmar que, depois de contar a história da sua vida e do seu amor por Capitu, Bentinho, o narrador:
(A) Conclui que Capitu não o traiu.
(B) Buscando conforto na Bíblia, chega à conclusão de que, apesar de Capitu o ter traído, ele deveria perdoar-lhe e não sentir ciúmes dela.
(C) Não tem certeza de que Capitu o traiu, embora acredite que ela tenha se transformado muito desde a adolescência, aparecendo quando adulta como uma cigana traiçoeira e dissimulada.
(D) Chega à conclusão de que Capitu já possuía, quando menina, os traços psicológicos que a caracterizariam na fase adulta.
(E) Constata que Capitu e seu amigo José Dias mantinham um romance desde a adolescência.
2. (UEL) As questões de 2 a 4 referem-se ao trecho do capítulo de Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis (1839-1908.)OLHOS DE RESSACAEnfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto, nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.Fonte: ASSIS, J. Maria Machado de. Obra Completa. V.1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 927.
Com base no texto e seus conhecimentos sobre a obra, assinale a resposta correta nas questões
de 2 a 4.A narração do momento em que Capitu fixa o olhar no cadáver de Escobar efetiva-se:
A) Muitos anos após a morte de Escobar, tendo por objetivo mostrar ao leitor a percepção do narrador da dissimulação de sua esposa, Capitu.
B) Logo após o enterro de Escobar, mostrando-se o narrador solidário com a dor da viúva, Sancha, personagem caracterizada pela dissimulação.
C) Através das palavras de Bento Santiago, melhor amigo de Escobar, tendo por objetivo registrar a dor dos amigos no momento do enterro.
D) Logo após o enterro de Escobar, tendo por objetivo registrar o forte vínculo que unia sua família à do negociante e ex-seminarista.
E) Muitos anos após o enterro de Escobar, tendo por objetivo ressaltar o transtorno ocasionado pela imprudência do ex-seminarista.
3. De acordo com o texto, é correto afirmar:
A) Diante do trecho acima transcrito, compete ao leitor acreditar ou não nas palavras do narrador uma vez que apenas suas palavras fazem-se presentes.
B) Capitu, embora seja vista apenas pelo narrador, apresenta um comportamento ambíguo, pois não quer que as pessoas notem seu amor por Escobar.
C) O comportamento dissimulado caracteriza Capitu, como deixam claras as palavras do narrador, seu marido, efetivadas logo após o enterro do amigo.
D) Diante das palavras seguras do narrador, ex-seminarista e advogado, resta ao leitor a segurança de que Capitu era uma mulher adúltera.
E) As palavras do ex-seminarista e advogado competente são a garantia da veracidade da cena descrita na qual Capitu fixa apaixonadamente o cadáver do amigo.
4. A denominação do capítulo, “Olhos de ressaca”, é resultante da leitura que o narrador faz:
A) Do mal-estar de Sancha diante do corpo inerte do marido.
B) Da agressividade incontida do olhar de Bentinho em direção a Capitu.
C) Do desejo detectado no olhar de Capitu de apossar-se de Escobar.
D) Da força e do ímpeto presentes nos olhos de Capitu dirigidos ao marido.
E) Do mal-estar de Capitu provocado pela noite passada em claro.
Gabarito
1)D
2)A
3)B
4)A

2 comentários:

Anônimo disse...

Oiii
As fotos ficaram muito bem relacionadas com o texto.
Gostei muito

Geruza Zelnys disse...

concordo com o eduardo...
e que leitor assíduo que vcs encontraram, hein?!
G.

 
© Papeis Krista '' Por Elke di Barros